Publicado em 24 de dezembro de 2015
É avistado do quintal. Lépido, passa como uma criança ao longe da cerca de arbustos, mas não sem ser visto. Orelhas sobem, canetas param, câmeras vagueiam. “Olha ali o Seu Bichinho! Ô, Bichinho, vem cá”, gritamos interrompendo uma conversa sobre bailes, futebol e peixes que Itaipu, penúltima praia antes do limite administrativo de Niterói, teima valentemente em manter vivos.
Todo de branco – cabelos, camisa, barba por fazer – Seu Bichinho não decepciona a fama de lendário. Com a Medalha Tiradentes espetada no peito, honraria concedida por seu amigo Marcelo Freixo (“o Marcelo vive me ligando”, confessou a certa altura), o rapaz de 80 anos tem história: jogou no famoso Clube União; “matou” peixe que muita gente nunca ouviu falar; enfrentou os tratores do despejo que o queriam fora do Morro das Andorinhas; naufragou e sobreviveu por três vezes; e sorri, sorri muito. “Além de tudo é um grande paisagista”, lembra Eliana Leite, uma das lideranças da ALPAPI (Associação Livre de Pescadores e Amigos da Praia de Itaipu) e a responsável por perceber a presença do octogenário Bichinho.
No União, clube local que disputava os campeonatos de futebol menos badalados do Rio – mas não menos animados – era polivalente. “Qualquer posição que me botasse eu jogava”, lembra. Brincou o futebol até há pouco, só impedido pela dor das varizes. Em suas últimas partidas, já bem depois do triste fim do Clube União, tentava um acordo com os mais novos: vai devagar com o velho. “Mas eles entravam com tudo assim mesmo”, ri.
Dos peixes que “matou” – na fala dos pescadores o “pescar” é seccionado em suas etapas e se transforma na dupla “pegar-matar”, com prevalência para o último verbo – alguns já nem se ouve falar. Com a poluição do Lago de Itaipu e dos mares, a sobrepesca dos navios industriais e o avanço irrefreável de navios-sonda e plataformas de petróleo surgidos com o pré-sal, a riqueza natural do litoral fluminense vem sendo destruída e saqueada.
Jairo também foi condecorado. Recebeu a Medalha José Clemente Pereira da câmara dos vereadores de Niterói como reconhecimento pela luta em defesa da pesca artesanal e do meio ambiente. Jairo Augusto da Silva, pescador artesanal de Itaipu, liderança da ALPAPI e dono do quintal onde conversávamos sobre parte dessa riqueza roubada – a humana, em especial – é um dos poucos que ainda vivenciaram os tempos dourados das histórias de Seu Bichinho.
Já avançando pela hora do almoço, a pergunta inevitável foi lançada antes que cada um tomasse seu rumo: qual o melhor peixe? Jairo lembrou dos bijupirás, chernes e garoupas, com especial carinho pelo primeiro: “o bijupirá ganha, é um peixe muito bom”. Para Eliana é o robalo. Eu arrisco peixes polêmicos, mas saborosos como o peixe-porco. André vai na mesma linha. Bichinho, que há pouco elegera o linguado (“mas o linguadozinho pequeno, não é o grandão, não”), aproveitou a deixa para saudar as qualidades do mangangá, o peixe-pedra: considerado o peixe mais venenoso do mundo, capaz de matar uma criança ou um idoso em 15 minutos. “É o melhor peixe que existe”, diz.
Antes de encarar os 15 minutos de caminhada que separam o Atlântico de seu sitio no topo do Morro das Andorinhas, pedimos a Seu Bichinho uma história sobre o mar. Assim falou o homem com a Medalha Tiradentes no peito: