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Sábado. Oito horas da manhã. O mar estava calmo, a água quase cristalina. O dia ensolarado e a vista do Pão de Açúcar ao fundo faziam um convite para descansar na praia de Itaipu, na Região Oceânica de Niterói. Não para Dona Ercília. Para ela o dia começa bem mais cedo e a praia está longe de significar descanso. Nas primeiras horas da manhã o marido tinha saído para pescar. Dessa vez ela tinha ficado e, às oito da manhã, já estava na praia, junto ao barco Altura, vendendo peixes frescos trazidos na rede havia pouco tempo. “Gosto de pescar à noite, se pudesse passava meses no mar”.

A paixão começou cedo. Ainda criança ela já saía para acompanhar seu pai no mar. “Eu sentia falta dele porque ele ficava muito tempo no mar. Ele achava perigoso, mas ficava com pena de mim e me levava”. Não parou mais. Na pesca conheceu seu marido, criou os filhos e sustentou a família.

Engana-se quem pensa que ela é uma das poucas mulheres na atividade pesqueira. Na comunidade de Itaipu, historicamente sustentada pela pesca artesanal, a história de Dona Ercília é parecida com a de muitas mulheres da região. Vendendo, limpando, pescando ou cozinhando os peixes, as mulheres dali aprendem desde cedo como viver da atividade e se orgulham de passar a tradição para as outras gerações.

Dona Carmem, ou Carmelita, como é conhecida, é pescadora na região há 35 anos. Embora não tenha nascido em Niterói – ela veio de Pernambuco aos 20 anos -, encantou-se pela região e por um pescador. Casou e ficou. Por ali, ela é uma das poucas que vende mexilhão e foi assim que criou os quatros filhos. E se orgulha de ter ensinado para eles tudo o que sabe sobre a atividade. “Eles sempre estudaram, mas também trabalhavam, desde pequenos. Agora, minha filha Diele não sai do mar. Ela vai todo dia com o pai pescar. Ele é sócio dela”. Sua filha, além da pesca, tem um tradicional restaurante na praia.

Apesar do amor pelo mar, Carmelita não nega que o trabalho nem sempre é fácil. “É muito sacrificante, mas é um serviço bom, que dá dinheiro. Tem época que se ganha bem e tem época que é horrível, como no inverno. Por isso, sempre fazemos uma reserva”, explica. Como é uma atividade que depende das condições naturais, as famílias precisam saber administrar bem o que ganham para não enfrentar dificuldade nas épocas de pouco peixe. “Tem época que ganha bem e tem época que é uma porcaria. No verão o dinheiro rola. Mas o inverno é brabo. Sempre fazemos uma reserva. Sempre deu pra sobreviver”, explica Carmelita.

Regime de cooperação

Dona Silene também trabalha no ramo há mais de 20 anos com o marido, Seu Waldecir, mas, depois de passar por três enfartos, ela não pesca mais. Nem por isso trabalha menos. Ela passa o dia inteiro com o marido limpando e vendendo os peixes. Mãe de três filhos, graças à pesca nunca faltou nada em casa. Mas ela incentivou que eles estudassem para terem uma vida menos cansativa: “passo o dia inteiro aqui, chego em casa e ainda tenho que fazer janta, arrumar tudo. As vezes o corpo não aguenta. E aqui a gente trabalha todo dia. É frio, é sol, é feriado”, conta a mulher.

O convívio faz com que todo mundo na região se conheça. Muitos cresceram e pescam juntos, e muitas vezes são até parentes distantes. Assim, formam uma grande família e todos se respeitam e se ajudam. “Todo mundo aqui é unido. Se tem um problema com um pescador todo mundo vai em cima” explica Carmelita. Nos dias de poucas vendas, a cooperação entre eles é fundamental. “Quando não dá muito movimento tentamos passar pra fora. Um ajudando outro, é assim. Passamos pro mercado, restaurante. Já temos o contato”, relata Ercília.

Nessa grande família, o que não falta é história para contar. Dona Ercília lembra do momento em que ficou presa em uma ilha. “Há mais de 20 anos eu achei, em uma ilha, uma florzinha bonita. Parei o barco e fui pegar. Mas acabei ficando presa porque o mar começou a bater em cima de mim. Pedi para o pai dos meu filhos ir embora: ‘vai embora, me deixa aqui!’” No final, ela conseguiu ir embora em segurança. Mas nem por isso ficou traumatizada: “sou muito aventureira”.

Já Carmelita jura que teve o barco “perseguido” por uma baleia. “Entrei pro mar e uma baleia enorme ficou perseguindo a gente. Se ela entrar embaixo do barco capota com a gente. Mas sei nadar bem. Eu dizia: ‘meu Deus, a baleia vai me pegar!’”. Para a sorte dela, a baleia seguiu outro caminho e ela voltou sã e salva para terra firme. “Se me mandarem para o mar eu vou, mas é um olho no mar e o outro na baleia”. Apesar da experiência angustiante, ela não se ressente: “Eu gosto daqui. Adoro isso. Todo dia eu agradeço ‘Obrigada meu Deus por ter me colocado nessa maravilha, nesse paraíso’. Daqui eu só saio quando eu morrer”, conta, emocionada.

Respeito ao defeso

Carmem, Ercília e Silene são mulheres simples que encontram na pesca uma maneira de sustentar suas famílias. As três possuem barcos próprios e fazem o trabalho de maneira inteiramente artesanal. Retiram do mar apenas o que precisam para proverem suas famílias, preservando o ambiente natural e o período de procriação das espécies, conhecido como defeso. Mas todas enfrentam um problema que tem dado dor de cabeça na região: os navios pesqueiros.
Esses navios fazem uma concorrência desleal, pois pescam muito mais do que todos os pescadores juntos conseguiriam pegar, o que prejudica seu sustento. Além disso, os navios passam alguns dias fazendo o arrastão: técnica com redes que, ao serem puxadas por dois barcos pesqueiros paralelos, “varrem” o fundo do mar. A técnica é extremamente nociva: além de pegar toneladas de peixes, depreda a vegetação do fundo do mar e captura peixes mais novos, que sequer servem para a comercialização. O conjunto desses três fatores prejudica a renovação dos peixes na região e, ao contrário da pesca artesanal, não fazem uma atividade sustentável. “A pesca industrial é ruim porque eles levam tudo. Teve uma época que a gente pescava muita corvina. Chegaram esses barcos grandes e levaram tudo, umas 20 toneladas. A corvina ficou escassa. Agora que começou a aparecer um pouco”, explica Silene.

Outro problema é quando os navios pesqueiros “cercam” uma determinada região no mar e restringem a área dos pescadores, como explica Ercília: “Uma coisa que eles prejudicam aqui são as redes. Não conseguimos colocar nossa rede por causa das marcações deles. Porque dentro da marcação não podemos pescar. É como se colocasse uma cerca no mar. Eles brigam quando ultrapassamos essa marcação”.

Por mais que a pesca do mexilhão seja bastante diferente, Carmelita diz que também é afetada pela pesca industrial. “A pesca do mexilhão é na pedra com uma cavadeira, remo. A gente vai remando com pé de pato. Os navios pesqueiros não pescam mexilhão, mas atrapalham muito quando estão perto da costa”, explica.

Além das histórias, Ercília e Carmelita têm em comum um fato bastante curioso: não comem peixe. “Como muito frango. Sinto o cheiro de peixe o tempo todo. Pode me bater, mas não fala em peixe perto de mim”, conta Carmelita. Dona Ercília não é tão radical mas também admite que é difícil comer peixe. “Não como nem assado, nem cozido, nem frito. Peixe que eu gosto é o congro rosa, sardinha… Mas é difícil me ver comendo”.

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