Publicado em 24 de dezembro de 2015
Seu Bichinho, antigo morador do Morro das Andorinhas, em Niterói, desafia, com sua história, as noções tradicionais de arcaico e moderno
“Eu sou pobre, menino”, disse Américo Fernandes de Souza, 81 anos, também conhecido como Seu Bichinho, ao receber nossa equipe e ouvir comentários de que teria uma excelente qualidade de vida. Morador de uma pequena comunidade de 12 núcleos familiares de mesmo sobrenome no topo do Morro das Andorinhas, em Itaipu, região oceânica de Niterói, o ex-pescador reside dentro da reserva do Parque Estadual da Serra da Tiririca e convive harmoniosamente com as leis do homem e da natureza.
“Não posso criar gado e a área de edificação e plantio são bem limitadas”, explicou Seu Bichinho. Ainda assim, ele vive em uma confortável casa com telefone, TV, água e esgoto sanitário. Há ainda um campinho de futebol, onde ele e seus parentes realizam também festividades. No entanto, é a lida reciprocamente respeitosa com os recursos naturais de seu entorno que fazem operar uma mudança semântica, invertendo os valores do que se entende por riqueza e desenvolvimento no senso comum urbano.
O avô de Seu Bichinho estabeleceu-se no topo do Morro das Andorinhas por volta de 1870, muito antes da delimitação de qualquer área de preservação. O objetivo era explorar um novo ponto de pesca e extrativismo. Desde então, a história dessa família confunde-se com a trajetória dos caiçaras de Itaipu e traduz um estilo de vida contrastante com a expansão urbana e econômica da cidade de Niterói.
“Quando era mais jovem, caminhava até [o centro de] Niterói à pé”, contou Seu Bichinho. “Ida e volta.” Atualmente, mesmo que faça o longuíssimo trajeto com o auxílio das linhas de ônibus, traçando o crescimento urbanístico do município, o senhor de idade avançada sobe e desce o morro com agilidade e vigor juvenis. Segundo a vizinhança, chega a visitar a praia três vezes por dia. Não à toa, possui uma saúde de ferro, evidente pela vitalidade mental e física.
Embora não tenha uma vida de luxos, Seu Bichinho parece ter alcançado muito mais do que o cidadão urbano médio. O bem-estar proveniente da sua rotina e a coerência socioambiental de suas práticas cotidianas são conquistas quase impossíveis para os residentes dos endereços disputados e assolados pela poluição e pelo trânsito das zonas nobres das cidades. Contudo, ele vê se aproximar cada vez mais do terreno em que mora um condomínio de classe média alta na encosta cuja vista dá para a praia de Itacoatiara.
“Projeto Se Liga” e a recusa do “Village Itacoatiara” em se ligar à rede de esgoto
Da sua casa, Seu Bichinho aponta para as construções ostentatórias que adentram o Parque Estadual da Serra da Tiririca. “Com uma liminar ali, outra condescendência da Prefeitura acolá, essa gente constrói mais a cada dia”, observou ele. “Eu fui da época em que se podia descer para Itacoatiara por aqui. Hoje, não dá mais.” O fechamento da trilha Itacoatiara-Itaipu pela guarita privada de um condomínio residencial luxuoso é uma reclamação antiga dos ecologistas, mas o imbróglio mais recente do empreendimento revela o caráter dúbio na relação entre arcaico e moderno.
Em julho deste ano, os principais jornais fluminenses noticiaram a recusa do condomínio em ligar-se à rede de esgoto do bairro. Segundo o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), todos os imóveis da localidade aderiram ao ‘Projeto Se Liga’, conectando-os ao esgotamento sanitário público. Em resposta, o subsíndico afirmou ao jornal O Globo que o sistema de fossas e filtros particulares seria suficiente e até mais seguro, o que é negado pelos órgãos responsáveis, que acusam os moradores de não quererem arcar com os custos da obra.
A conduta antirrepublicana dos notórios proprietários das mansões de Itacoatiara ajuda a ressignificar a opulência e o brio de suas posses. Vistas como sinal de sucesso e sofisticação por muitos, assumem a feição do desenvolvimento predatório. “Eles não me querem aqui. Volta e meia, sofro ameaça de remoções”, confidenciou Seu Bichinho. A frágil identidade do pretensioso progresso sucumbe à alteridade do orgânico e do simples. Não há tolerância com o diferente.
Assim, Seu Bichinho pode não se dar conta, mas acaba por representar uma das alternativas mais engenhosas para os dilemas enfrentados pela sociedade contemporânea. Ao identificar-se com a pobreza, inverte o sistema de valores. De fato, ele nada tem em comum com a lustrosa modernidade, que ameaça o mundo por esgotamento, mas sim com o dinamismo supostamente arcaico em consonância com os ideais básicos de subsistência e não-acumulação. Demonstra, ao final, que ultrapassada é a desconexão com a coisa pública e a natureza; e o caminho para o futuro pode estar na experiência pregressa de dois séculos de convivência daquela família com o Morro das Andorinhas.